Terapia em português - "Happily Ever After"
Falar sempre sobre os mesmos temas pode parecer aborrecido. Mas na verdade, passamos a maior parte dos nossos dias a falar e a pensar nas mesmas coisas. O que vestir hoje, as despesas da semana, o que cozinhar ao jantar, o trânsito na ponte, o covid, a desgraça no mundo, o quintal do vizinho…
Falamos nos mesmos assuntos, dia após dia, com as mesmas pessoas e connosco próprios.
Aos poucos, comecei a encontrar na terapia um espaço para poder falar e refletir, vezes sem conta, sobre assuntos estigmatizados pela sociedade, falsas crenças e mitos aprendidos inconscientemente, grande parte deles condicionadores das relações que estabelecemos.
Assuntos que não falamos socialmente porque somos todos vítimas do mesmo fenómeno de inibição, para poder encaixar no que é “socialmente correto”.
O mito que quero explorar ao escrever estas linhas é aquele que aprendemos desde pequenas criaturas, encantadas com as histórias de princesas e do tão repetido “…e viveram felizes para sempre”. Não que eu tenha qualquer tipo de objeção a histórias de fantasia. Mas talvez uma pitada de real-life não fizesse mal a ninguém em fase de crescimento.
O mito das relações perfeitas perpetua-se, em muitos casos, até à vida adulta, criando uma sombra crescente e um vazio perene, causada pela expetativa de finais felizes que nunca chegam.
Da Disney a Hollywood, passando pela romantização dos contos populares e por todo o marketing publicitário, que nos oferece produtos sem os quais a nossa felicidade não passa de uma utopia, criou-se esta cultura do amor romântico que nos deixa inebriados pelo prazer da paixão e cegos à complexidade do amor.
Não me refiro apenas à paixão por outra pessoa. Apaixonamo-nos facilmente por tudo o que é novidade, com todas as células de nosso corpo a gritar de excitação quando estamos a viver um flirt recente, quando compramos uma roupa nova ou quando arriscamos uma experiência diferente.
O nosso cérebro aprende desde cedo a experiência prazerosa das bombadas de dopamina quando nos oferecem brinquedos novos. E sem darmos conta, a felicidade ganha um significado absolutamente distorcido!
Passamos uma vida à procura de objetivos assentes na ilusão criada por uma sociedade de consumo rápido, que comummente nos leva a cair, uma e outra vez, em lugares de vazio e desnorte.
Estar perdido até pode ser fixe, mas se toda a vida ouves dizer que “tens de ser alguém” (este conceito parvo e abstrato que sai da boca de muitas pessoas que não fazem ideia de quem são), cais no desespero e na frustração sempre que a fonte de dopamina seca.
O que nos leva a procurar sempre mais sem nunca encontrar aquela tão desejada sensação de preenchimento.
Assim, como “finais felizes” vendem muito melhor, todas as histórias de “amor” que vemos no cinema, acabam antes sequer de começarem. “O Titanic” conta a história empolgante e limite de uma relação de cinco dias (poupem-me!). O “Diário da nossa Paixão” fala de uma relação longa é verdade, mas o público só se emociona porque ficou a conhecer os arrebatadores primeiros 3 meses de uma relação proibida. Duvido que muita gente tenha tido curiosidade de pesquisar sobre a realidade do que é amar alguém com Alzheimer. Porque ter Alzheimer é chato e pesa. E nós vamos ao cinema para ver histórias de amor e finais felizes que nos aliviem o peso da nossa existência.
Pena que, à medida que crescemos, nos apercebemos que não podemos estar sempre na proa de um navio a meter água, agarrados ao Di Caprio ou ao Ryan Gosling.
A vida não parece ser sempre intensa, excitante ou intrigante. Nem o amor. Nem as relações reais, durem elas 10 anos ou uma vida.
E isto ninguém nos ensina. Bolas!
Como se fica no mesmo lugar, depois da festa de arromba chegar ao fim? Depois da música acabar e amanhecer e estar tudo uma bodega? Quando a magia da noite se desvanece e começa a ficar tudo cinzento? Quando as projeções da nossa ilusão fantasiosa do outro começam a cair, fruto do convívio diário?
Se não há festa, vamos embora. Se não há felicidade, não há amor. Se não há queca, não há desejo. Se te amo, não amo mais ninguém. Ou é preto ou é branco.
As dualidades presentes em tudo o que nos rodeia atrofiam-nos o desenvolvimento, colocam-nos em caixinhas, nas quais vivemos miseravelmente impedidos de criar, explorar e crescer, entregues a uma masturbação mental escondida pela vergonha.
Fáceis de controlar.
Qual é a coragem necessária para descobrir o amor? Aquele que nunca nos contam como é. Aquele que é mais desafiante do que deixar-se morrer gelado num naufrágio no meio do Atlântico. Aquele que tem preto e branco, mas também tem cinzento, roxo e púrpura. Aquele que não mata mas mói.
Qual é a coragem necessária para abraçar as limitações do outro, para digerir a desilusão inevitável das nossas expetativas? Para mergulhar na escuridão de um oceano de tempestades?
Como um grande amigo meu me dizia há dias, nascemos neste mundo e nunca seremos totalmente livres. Mas podemos libertar-nos de muita coisa que nos deixa mais longe da felicidade de estar vivo.
Cada dia surge no meio da turbulência ou do aborrecimento infernal, como uma oportunidade para respirar à tona e manter os olhos abertos. Para aprender a reconhecer as coisas maravilhosas que existem no fundo do mar ou no meio da quietude, e a ser capaz de tocar a felicidade, uma e outra vez.
Pelo menos esta felicidade… desconhecida, não aprendida em lugar algum, nunca se esgota. Porque pode estar contida, mas nasce e morre connosco.