Férias em corpo dormente
Não sei se vos aconteceu alguma vez, durante um período de férias mais prolongado (ou noutro período qualquer), acordar meios zonzos, desnorteados, com uma sensação de cansaço estranha, sem razão aparente.
Não é a primeira vez que tal me acontece e desta, apanhou-me nas tão desejadas férias. Após sete dias nos Açores, na ilha de S. Miguel, comecei a sentir-me como que a transformar-me numa salsicha mole (talvez motivada pelo enfardamento diário de pão, queijo e vinho), com cada vez menos vida e identidade. Isto talvez possa parecer estranho mas, em boa verdade, não tenho melhor forma de o descrever.
Esta sensação teve o seu auge no dia em que fomos banhar-nos nas águas termais da Poça da Dona Beija, nas Furnas. Enquanto estava com o corpo submerso nas águas quentes, a sentir os vapores na cara, com a tensão arterial (já habitualmente baixa) a descer para valores que me proporcionaram uma espécie de anestesia cerebral, fui perdendo a noção do tempo e da própria perceção corporal. Por momentos, passei a existir apenas nos meus pensamentos e iniciei uma viagem de reflexão acerca da forma aprisionada como vivenciamos o nosso corpo. Nop, nada de drogas ;)
Minutos após sair dos tanques escrevi o seguinte:
“Só podemos ser livres no agora. Já sei. Esta aprendizagem tão simples transformou a minha forma de estar no mundo. Já a vivi e sou capaz de encontrar esta liberdade se assim o entender. Mas o combate à insatisfação é uma luta constante dos meus dias. Posso distanciar-me, mas ela não me larga.
Passei os últimos dias nesta ilha, carregada pela sombra e o peso inquietante do que não fiz. A sentir o corpo preso na areia movediça dos pensamentos hipotéticos e o presente fugir-me por entre os dedos sem sequer o sentir.
A vida é tão curta e há tanto que quero amar.
Estou tão bem aqui… mas estarei realmente aqui a maior parte do tempo?
Tão longe de casa, a chuva corre atrás do sol, e o sol nunca fica por muito. Aqui, distante das minhas rotinas, das minhas ruas, distante da aprovação ou opinião dos que me rodeiam habitualmente, longe da social network, afinal quem sou eu? Sou mais sonhadora e destemida, ou mais amorfa e imóvel?
Imóvel - o corpo.
Distanciei-me do corpo. E quando digo corpo, não me refiro apenas à casca oca, mas à forma física numa dimensão global. À complexidade do seu contexto existencial, a sua representatividade social e a experiência sensorial vivida através do seu uso, como instrumento transformador e de interação com tudo o que me rodeia.
Compreendi que a perceção suspensa de mim surgiu como consequência da pouca atenção prestada à minha vivência física. O piloto automático da minha mente teve livre-trânsito desde que aqui aterrei e falta-me a consciência corporal para me lembrar que existo. Sei que me vou reencontrar nas sensações e na interação com o mundo mais tarde ou mais cedo”.
Esta pequena divagação motivou-me a terminar esse dia com uma sessão de yoga bem suada e a fazer mais duas horas de surf na manhã seguinte. Sem dúvida modificou a minha sensação de rendimento dos dias. A atividade física puxou-me para o presente e trouxe-me mais awareness da experiência vivida, ou pelo menos assim pensei. Porque o exercício não passou de uma reação clássica para fugir do que vou explicar a seguir.
Permaneci com a pergunta incomodativa – por que raio não sou capaz de sentir e vivenciar o meu corpo, a não ser que esteja a desafiar os seus limites? Estarei eu condenada a entrar neste estado de apatia e alienação do Eu sempre que sair fora do meu contexto habitual? Sempre que faço uma pausa do exercício, da minha agenda e dos meus projetos?
Já no voo de regresso ao continente, li uma passagem do livro “Body Consciousness – A Philosophy of Mind and Somaesthetics” do filósofo Richard Shusterman. Foi dele que ouvi pela primeira vez o conceito de soma, referindo-se ao corpo numa perspetiva muito mais abrangente. Nesta passagem que tentei traduzir em baixo, o autor analisa e critica a forma como Michel Foucault explorava a vivência do prazer corporal, através da procura da super estimulação física. Pode ler-se:
“Na nossa cultura, a procura constante de cada vez mais intensidade de estimulação somática (corporal) na busca da felicidade, constitui a receita para o aumento da insatisfação e dificuldade no alcance do prazer. A submissão a tais formas de intensidade adormece a nossa consciência e perceção somática.
Não poderemos apreciar o som delicado do bater dos nossos corações se estivermos com música alta e fones nos ouvidos.
A cultura do extremismo sensorial reflete e reforça o profundo descontentamento somático (da vivência corporal em si e com o mundo). Este descontentamento é o que nos move, apesar de ser vagamente percebido e compreendido pela nossa tão pouco desenvolvida consciência corporal.
A anedonia de Foucault e o seu extremismo expressa a tendência comum da nossa sociedade capitalista, cuja reclamação constante de crescimento económico, promove a demanda de mais e maiores estímulos, informação, sensações fortes e música alta.
O resultado é a patológica, mas tão comum, necessidade de hiperestimulação para sentir que estamos realmente vivos.”
Sugestão ou não, estre trecho assentou que nem uma luva na caracterização do meu desconforto existencial durante as férias. A ausência de estímulos fortes há vários dias, o relaxamento e a despreocupação de não ter obrigações, a culminar com a anestesia corporal induzida pelo calor das termas deixou-me num estado de desconforto tal, que passou inicialmente pela luta interna com a pulsão de “ter” de fazer coisas, e chegou a tocar na sensação angustiante de estar “menos viva”.
Deixamo-nos amarrar pelos interesses externos, cegos às nossas necessidades mais básicas e caímos no desperdiçar da vasta e tão rica experiência que os nossos corpos nos podem proporcionar.
Regressei com maior clareza em relação à necessidade de desenvolver e cultivar o chamado body awareness, esta consciência corporal (como parte integrante do conceito mais lato de self-consciousness – corpo e mente), que pode constituir um dos caminhos para recuperar algum poder sobre o sistema capitalista que nos bombardeia diariamente com ofertas, do incentivo labiríntico ao consumo, do querer sempre aquilo que não podemos ter. Esta forma de viver está-nos a transformar como espécie e ao nosso planeta. Está a distanciar-nos de nós próprios e dos outros.
Talvez precisemos de aprender a sentir os nossos corpos outra vez, como bebés que tocam o chão pela primeira vez. Compreender melhor o que ele realmente precisa para que possamos escolher sabiamente o que fazer com ele. Aprender a estar quietos, a explorar as nossas sensações e a aceitar as emoções que a vida nos oferece sem nos identificarmos com elas. Entender que somos um veículo pode talvez libertar-nos da prisão do perfeccionismo e colocar-nos em maior equilíbrio com o resto do planeta.
Às vezes parece que nos esquecemos do quão dependemos desse equilíbrio!
Práticas como o yoga, o Tai Chi Chuan, a biodança, o mindfulness e outras práticas meditativas, o pranayama (ramo do yoga que compreende o controlo da respiração e do movimento da energia vital), bem como métodos não tão conhecidos a nível da europa como o Feldenkrais Method, são algumas opções que visam otimizar a vivência sensoriomotora e promover o bem-estar psicológico. Estas praticas têm sido apontadas como tendo enormes benefícios no melhoramento da experiência humana.
Atualmente pratico yoga com regularidade e tento integrar o mindfulness no meu dia-a-dia. Ainda assim, como referi, gostaria de aprofundar a minha experiência neste campo pelo que pretendo continuar a aprender e a explorar o entendimento de mim através do desenvolvimento da auto-consciência.
Se já tiveram alguma sensação parecida, por favor partilhem os vossos pensamentos ou reflexões. Se já colocam em prática alguma ação que vos ajuda a estar mais conectados à vossa existência corpórea teria o maior gosto em aprender convosco! Disponível através do Instagram, Facebook ou no botão Contact da página About.
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